quinta-feira, novembro 10, 2011

Diálogo no Ventre


No ventre de uma mulher grávida dois gêmeos dialogam:
- Você acredita em vida após o parto?
- Claro! Há de haver algo após o nascimento. Talvez estejamos aqui principalmente porque nós precisamos nos preparar para o que seremos mais tarde.
- Bobagem, não há vida após o nascimento. Afinal como seria essa vida?

- Eu não sei exatamente, mas certamente haverá mais luz do que aqui. Talvez caminhemos com nossos próprios pés e comeremos com a nossa boca.
- Isso é um absurdo! Caminhar é impossível. E comer com a boca? É totalmente ridículo! O cordão umbilical nos alimenta. Além disso, andar não faz sentido pois o cordão umbilical é muito curto.
- Sinto que há algo mais. Talvez seja apenas um pouco diferente do que estamos habituados a ter aqui.
- Mas ninguém nunca voltou de lá. O parto apenas encerra a vida. E afinal de contas, a vida é nada mais do que a angústia prolongada na escuridão.
- Bem, eu não sei exatamente como será depois do nascimento, mas com certeza veremos a mamãe e ela cuidará de nós.
- Mamãe? Você acredita em mamãe? Se ela existe, onde ela está?
- Onde? Em tudo à nossa volta! Nela e através dela nós vivemos. Sem ela não existiríamos.
- Eu não acredito! Nunca vi nenhuma mamãe, não existem provas científicas que ela exista, por isso é claro que ela não existe.
- Bem, mas ás vezes quando estamos em silêncio, posso ouvi-la cantando, ou senti-la afagando nosso mundo. Eu penso que após o parto, a vida real nos espera; e, no momento, estamos nos preparando para ela.

AUTOR DESCONHECIDO

(Recebi por e-mail)

sábado, outubro 08, 2011

Inocência Pristina

Está vivo em nosso imaginário comum a ideia de uma pureza primitiva. Verdade incontestável, na inocência dos primeiros tempos, desconhece-se a maior parte do mal e seus efeitos, muitos dos quais só encontram razão de subsistência em sistemas sociais algo complexos, tais quais aqueles em que hoje vivemos.

Quase tão senso comum quanto esta ideia, é a tentação de voltar atrás, a este estado de coisas. Voltar para um tempo e/ou condição anterior aos erros que criamos, com o passar das gerações, e que parecem de tal forma desenvolvidos, que se mostram impossíveis (dizemos, talvez sem refletir muito) de extirpar.

Muitos usam esta idéia para justificar revoluções. A idéia de "explodir tudo" e recomeçar, dar outra chance a civilização, para que ela se torne então, de fato, mais civilizada.

O problema com este argumento, a meu ver, é que confunde dois conceitos bem diferentes. É bem verdade que a pureza primitiva implica um tipo de pureza: a ausência de certos conhecimentos e vivências simplesmente nos afasta de tomar diversos dos caminhos que tomamos, em particular, o molde sócio-cultural com o qual nos acostumamos, e sua dose fundamental de mercantilismo egoísta. Mercantilismo que teima em precificar até o que não tem preço.

Mas voltar atrás significa mudar algo? Em que recomeçar difere de fazer tudo de novo? Pelas probabilidades, sem inserir novas informações (perturbações, se preferir) em um sistema, ele tende a repetir o mesmo padrão, ainda que por vias diferentes, pois os pesos e contrapesos existentes ainda permaneceriam os mesmos. Não parece ingenuidade pensar que tudo aquilo que nos trouxe onde estamos sejam meras e sutis externalidades, ao invés de características intrínsecas, que quando desenvolvidas desta ou daquela forma, tendem a este ou aquele resultado?

Desta forma, recomeçar não teria grande configuração de mudança. Seria, talvez, simples voltar no tempo, sem que houvesse o personagem ficcioso do presente, a assistir (e tentar, com seus conhecimentos atuais, mudar o que passou).

Seria o "aprender com os erros do passado, para que não se repitam", só que sem o aprender.

Podemos concluir com base nisto que a inocência pristina é corruptível. Voltar atrás, sem deixar aos que recomeçam um legado que os permitisse agir diferente, tende a não trazer vantagem alguma.

Aí está a dificuldade e ingenuidade do argumento. Quem está em condições de deixar este legado: nós? Pretensão, não? Mas assumamos que o estivéssemos: não o conseguiríamos então deixá-lo as gerações futuras, ao invés de destruí-las, sob o pretexto de reformá-las?

Ao contrário deste conceito tão comum, afirmo que a inocência incorruptível existe, mas não onde o senso comum pensaria em buscá-la: ela está naqueles que passaram pelas provas, e não naqueles que ainda não atingiram o ponto de serem provados. A ingenua pureza da folha em branco, intocada, talvez não tenha nada a ver com a inocência, afinal. A presença ou ausência de frutos e flores é uma avaliação que se faz da árvore, e não da semente.

quinta-feira, setembro 15, 2011

Fátima, a Fiandeira

Numa cidade do mais longínqüo Ocidente vivia uma jovem chamada Fátima, filha de um próspero Fiandeiro.

 Um dia seu pai lhe disse: — Filha, faremos uma viagem, pois tenho negócios a resolver nas ilhas do Mediterrâneo. Talvez você encontre por lá um jovem atraente, de boa posição, com quem possa então se casar.
 Iniciaram assim sua viagem, indo de ilha em ilha; o pai cuidando de seus negócios, Fátima sonhando com o homem que poderia vir a ser seu marido. Mas um dia, quando se dirigiam a Creta, armou-se uma tempestade e o barco naufragou. Fátima, semiconsciente, foi arrastada pelas ondas até uma praia perto de Alexandria. Seu pai estava morto, e ela ficou inteiramente desamparada. Podia recordar-se apenas vagamente de sua vida até aquele momento, pois a experiência do naufrágio e o fato de ter ficado exposta às inclemências do mar a tinham deixado completamente exausta e aturdida.

 Enquanto vagava pela praia, uma família de tecelões a encontrou. Embora fossem pobres, levaram-na para sua humilde casa e ensinaram-lhe seu ofício. Desse modo Fátima iniciou nova vida e, em um ou dois anos, voltou a ser feliz, reconciliada com sua sorte.

Porém um dia, quando estava na praia, um bando de mercadores de escravos desembarcou e levou-a, junto com outros cativos. Apesar dela se lamentar amargamente de seu destino, eles não demonstraram nenhuma compaixão: levaram-na para Istambul e venderam-na como escrava.

 Pela segunda vez o mundo da jovem ruira. Mas quis a sorte que no mercado houvesse poucos compradores na ocasião. Um deles era um homem que procurava escravos para trabalhar em sua serraria, onde fabricava mastros para embarcações. Ao perceber o ar desolado e o abatimento de Fátima, decidiu comprá-la, pensando que poderia proporcionar-lhe uma vida um pouco melhor do que teria nas mãos de outro comprador.

 Ele levou Fátima para casa com a intenção de fazer dela uma criada para sua esposa. Mas ao chegar em casa soube que tinha perdido todo o seu dinheiro quando um carregamento fora capturado por piratas. Não poderia enfrentar as despesas que lhe davam os empregados, e assim ele, Fátima e sua mulher arcaram sozinhos com a pesada tarefa de fabricar mastros. Fátima, grata ao seu patrão por tê-la resgatado, trabalhou tanto e tão bem que ele lhe deu a liberdade, e ela passou a ser sua ajudante de confiança.

Assim ela chegou a ser relativamente feliz em sua terceira profissão. Um dia ele lhe disse: — Fátima, quero que vá a Java, como minha representante, com um carregamento de mastros; procure vendê-los com lucro. Ela então partiu. Mas quando o barco estava na altura da costa chinesa um tufão o fez naufragar.

 Mais uma vez Fátima se viu jogada como náufraga em uma praia de um pais desconhecido. De novo chorou amargamente, porque sentia que nada em sua vida acontecia como esperava. Sempre que tudo parecia andar bem alguma coisa acontecia e destruia suas esperanças. — Por que será — perguntou pela terceira vez — que sempre que tento fazer alguma coisa não da certo? Por que devo passar por tantas desgraças? Como não obteve respostas, levantou-se da areia e afastou-se da praia. Acontece que na China ninguém tinha ouvido falar de Fátima ou de seus problemas.

 Mas existia a lenda de que um dia chegaria certa mulher estrangeira capaz de fazer uma tenda para o imperador. Como naquela época não existia ninguém na China que soubesse fazer tendas, todo mundo aguardava com ansiedade o cumprimento da profecia. Para ter certeza de que a estrangeira ao chegar não passaria despercebida, uma vez por ano os sucessivos imperadores da China costumavam mandar seus mensageiros a todas as cidades e aldeias do país pedindo que toda mulher estrangeira fosse levada à corte.

 Exatamente numa dessas ocasiões, esgotada, Fátima chegou a uma cidade costeira da China. Os habitantes do lugar falaram com ela através de um intérprete e explicaram-lhe que devia ir à presença do imperador.

 — Senhora — disse o imperador quando Fátima foi levada até ele — sabe fabricar uma tenda? — Acho que sim, Majestade — respondeu a jovem. Pediu cordas, mas não tinham. Lembrando-se dos seus tempos de fiandeira, Fátima colheu linho e fez as cordas. Depois pediu um tecido resistente, mas os chineses não o tinham do tipo que ela precisava. Então, utilizando sua experiência com os tecelões de Alexandria, fabricou um tecido forte, próprio para tendas.

Percebeu que precisava de estacas para a tenda, mas não existiam no país. Lembrando-se do que lhe ensinara o fabricante de mastros em Istambul, Fátima fabricou umas estacas firmes. Quando estas estavam prontas ela puxou de novo pela memória, procurando lembrar-se de todas as tendas que tinha visto em suas viagens. E uma tenda foi construída.

 Quando a maravilha foi mostrada ao imperador da China ele se prontificou a satisfazer qualquer desejo que Fátima expressasse. Ela escolheu morar na China, onde se casou com um belo príncipe e, rodeada por seus filhos, viveu muito feliz até o fim de seus dias.

 Através dessas aventuras Fátima compreendeu que, o que em cada ocasião lhe tinha parecido ser uma experiência desagradável, acabou sendo parte essencial de sua felicidade. 

A Fiandeira Fátima e a Tenda Esta história é muito conhecida no folclore grego, onde em muitos de seus temas contemporâneos figuram dervixes e suas lendas. A versão aqui apresentada é atribuída ao Xeque Mohamed Jamaludin de Adrianópolis. Fundou a Ordem Jamalia ("A Formosa"), e faleceu em 1750.


-- Extraído de 'Histórias dos Dervixes', Idries Shah, Nova Fronteira - 1976





quarta-feira, agosto 31, 2011

terça-feira, agosto 16, 2011

Vínculos

Pessoas há que passam pela nossa vida sem levar nada de nós, e sem nada nos deixar.
Pessoas há que deixam um perfume forte, mas que se dissipa rapidamente com o tempo. Preenchem uma necessidade de momento, que uma vez satisfeita, revela-se pueril.

Já pessoas há que nos marcam com sua presença de espírito, com detalhes como o seu sorriso e sua alegria, sua mais ou menos disposição em sentar-se ao nosso lado e escutar-nos falar, algo tão simples e corriqueiro, mas que realizado na circunstância necessária e com a companhia ideal, pode marcar nossa vida profundamente.

Algumas pessoas há, geralmente na família, que conquanto jamais consigamos criar um vínculo de intimidade, ou mesmo de compatibilidade de pontos de vista, sabemos que lá estão, e elas sabe que cá estamos; Que um poderá com o outro contar, em qualquer momento, apesar destas pequenas diferenças, que aparentemente não serão transpostas no curso de uma vida.

Esta miríade de tipos de vinculações que formamos e conosco formam, constitui o nosso círculo de contatos, a nível pessoal.

O que por vezes não percebemos é que em toda aquisição, existe um "custo", ou uma necessidade, de manutenção.

Assim como, adequadamente mantidos e revisados, os nossos bens móveis e imóveis podem ter uma vida útil bem superior a dos mesmos bens, quando deles apenas nos servimos à exaustão, as amizades e demais vínculos que formamos precisam, de tempos em tempos, serem regados, revisitados até. Nunca sabemos quando uma palavra nossa poderá render a renovação de um vínculo por toda uma vida.

E sem nossos vínculos, nossa história, nesta brincadeira séria de aprender a viver, jamais poderá ser contada corretamente. Sem as testemunhas a nos apontarem onde fomos humanos, onde superamos nossas limitações e onde a elas cedemos (e ceder por vezes é um direito inalienável, sobremaneira quando o cansaço nos alcança), sem os vínculos a nos auxiliar a repensar nossos caminhos, não vivemos; somos apenas o que nos sobra da ilusão de nossas próprias memórias.

sábado, maio 14, 2011

Sorriso Audível das Folhas

Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.

Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
O que se não conversou
Isto acaba ou começou?

-- Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

sexta-feira, abril 08, 2011

Órbitas alinhadas

Nossas órbitas alinharam apenas por tempo suficiente para que trocássemos impressões.
Não as mais superficiais, tampouco as mais profundas. Apenas impressões.

A gravidade me levou pra cá, e te levou pra lá, seguindo os preceitos naturais. Durante os breves instantes em que nossas atmosferas comunicaram, não sei que experiências levaste de mim, mas certamente, os ares do meu planeta já não são os mesmos: perfurmaram por entrar em contato com tua essência, e guardarão, espero que por muito tempo ainda, as impressões que registraste nas nuvens dos meus céus.

Seguiste tua órbita, mas deixaste tua essência por onde passasse, tal qual deveria ser com todos os planetas, não fossem estes, em sua maioria, estéreis e desprovidos de vida.

domingo, fevereiro 27, 2011

O Alienígena

"Pressentindo o momento derradeiro, ele lamentava a vala comum, o despojo que viria dos seus restos mortais sem pompa, cerimônia, mas sobretudo, percebia que ao deixar este mundo, em breves instantes não haveria memória de sua passagem pela terra.

Algo incomovido, percebi como são estranhos estes terrícolas, pois vivem sem tentar se destacar, muito ao contrário, muito esforço fazem para serem invisíveis e indistinguíveis, verdadeiros bois no rebanho, entretanto na hora da morte esperam algum milagre que os destaque, como se não tivessem eles mesmos tornado-se lamentavelmente esquecíveis".

domingo, fevereiro 13, 2011

A amizade é indispensável ao nosso ser

A amizade é a unica coisa cuja utilidade é unanimemente reconhecida. A própria virtude tem muitos detratores, que a acusam de ostentação e charlatanismo. Muitos desprezam as riquezas e, contentes de pouco, agradam-se da mediocridade. As honras, à procura da qual se matam tanto as pessoas, quantos outros as desdenham até olhá-las como o que há de mais fútil e de mais frívolo? E, assim, quanto ao mais! O que a uns parece admirável, ao juízo doutros nada é. Mas quanto à amizade, toda a gente está de acordo: os que se ocupam dos negócios públicos, os que se apaixonaram pelo estudo e pelas indagações sapientes, e os que, longe do bulício, limitam os seus cuidados aos seus interesses privados: todos enfim, aqueles mesmos que se entregaram todos inteiros aos prazeres, declaram que a vida nada é sem a amizade, por pouco que queiram reservar a sua para algum sentimento honorável.
Ela se insinua, com efeito, não sei como, no coração de todos os homens e não se admite que, sem ela, possa passar nenhuma condição da vida. Bem mais, se é um homem de natureza selvagem, muito feroz para odiar seus semelhantes e fugir do seu contacto, como fazia, diz-se, não sei mais que Timon de Atenas. É preciso ainda que este homem procure um confidente no seio do qual possa verter o seu veneno e o seu ódio. A necessidade da amizade será ainda mais evidente, se ele pudesse admitir que um Deus nos tirasse do seio da sociedade para nos colocar numa solidão profunda, onde, fornecendo-nos em abundância tudo o que a natureza nos pode propinar, nos subtraísse ao mesmo passo a esperança e os meios de ver jamais qualquer face humana.

Qual é a alma de ferro que suportaria uma tal existência e a quem a solidão não tornaria insípidos todos os gozos? Assim tenho por verdadeiras as palavras de Arquitas de Taranto, que entendi recordar a velhos que as ouviram eles próprios de seus pais: «se alguem subir ao céu, e de lá contemplar a beleza do universo e dos astros, todas essas maravilhas deixá-lo-ão indiferente, enquanto que o embasbacarão de surpresa se tiver de contá-las a alguém». Assim, a natureza do homem se recusa à solidão, e parece sempre procurar um apoio: e não o há mais doce que o coração de um terno amigo.

-- Marcus Cícero, in 'Diálogo sobre a Amizade'

quinta-feira, fevereiro 10, 2011

Obrigado, mais uma vez :-)

Volta e meia escrevo sobre você, por aqui. E as vezes, escrevo pra você.

Como você talvez imagine, isto as vezes me deixa numa situação complicada, pois as pessoas dão uma interpretação meio "tão profunda quanto uma poça d'água" e concluem que é por que eu ainda estou apaixonado. Aí rola uma crise básica de ciúmes, sabe como é.

Bom, se existir alguma forma não romântica de paixão, então, eu estou. E arrisco dizer que sempre estarei. E não é pra menos: poucas pessoas conseguem me fazer sentir especial, até hoje, nenhuma como você.

Por exemplo, as vezes me dizem coisas tentando me animar, e dá pra ver, que apesar da intenção ser a melhor, fica evidente que estão pintando os quadros com coloridos artificiais, tentando fazer a paisagem ser o que não é. Os argumentos são rebuscados, e por isso mesmo, acabam sendo fracos.

Não sei dizer a razão, mas quando você tenta fazer o mesmo, o colorido sai tão natural, me parece que você realmente consegue me ver, exatamente como se eu tivesse ao teu lado desabafando até o último ponto, coisa que, como bem sabes, eu nunca faço.

Você me passa a sensação de acreditar em mim de um jeito ... a ponto de conseguir realmente me animar.

E por isto acho que sempre lhe serei grato: não mais posso dizer, apenas, obrigado por existir, mas muito obrigado ainda por pensar em mim com tanto carinho. Mesmo estando longe, nunca está, e eu honestamente não sei o que fiz pra merecer tamanha confiança. Um dia talvez me explique. Ou um dia talvez eu apenas entenda.

Há tanto ainda pra aprender.

sexta-feira, janeiro 28, 2011

Do mal menor

Existe uma idéia algo tentadora de que, as vezes, seria possível fazer certa quantidade de bem, mas para isso, seria necessário fazer um pouco de mal.

Quando a proporção de bem parece absurdamente maior que o mal, especialmente quando este último parece, por comparação, tão insignificante, que chega mesmo a parecer, por contraste, que não é mal, especialmente quando te parece que qualquer efeito nocivo pode ser revertido, aí essa idéia parece mesmo inevitável, uma oportunidade em um milhão. Quem deixaria passar?

Você! Você, que lê, se ainda não caiu nesta cilada, não caia...

Quando as pessoas envolvidas se arvorarem em torno de teu julgamento, não pense que o prato do bem estará automaticamente preenchido e que seu peso na balança será automaticamente contabilizado a teu favor. As pessoas não enxergam automaticamente ações dúbias (e não posso tirar-lhes a razão) como passíveis de produzir quantidade representativa de bem.

Então, antes de, apressadamente, se colocar em uma situação que provavelmente não tens condição de medir o preço, pense bem: este pode ser bem maior do que aparenta. Há situações que não nos pertencem, e se o único meio (aparente) de fazer muito bem, é com uma atitude questionável, se abstenha: para o observador externo, é impossível fazer a coisa certa do jeito errado. E talvez, até mesmo de modo absoluto, o observador externo possa ter toda a razão do mundo, ainda quando você recorde da animação que a idéia te produziu e do bem que esperava almejar. Só você recordará, e se isto pode ter te parecido mais do que suficiente, eu te adianto, meu amigo, que dificilmente o será.

segunda-feira, janeiro 24, 2011

Mesmo homem, mesmo rio

É. Heráclito de Éfeso disse que um homem não cruza o mesmo rio duas vezes. Justificava ponderando que, da segunda vez que tentasse, nem seriam as mesmas águas, e nem seria ele o mesmo homem.

De um ponto de vista material, é fácil ver sentido, no que tange ao rio. Quanto ao homem, ainda de um ponto de vista material, é sabido que com o tempo, grande parte de sua composição molecular já foi substituída, pois que quase todas as células do corpo possuem vida relativamente curta, em comparação a expectativa de vida do conjunto.

No entanto, do ponto de vista das sensações, quando cruzei o rio pela segunda vez, me pareceu o mesmo. E eu percebi, forçadamente, que ainda era o mesmo homem, com as mesmas conquistas, mas, sobretudo, com as mesmas limitações e falhas.

Até pior, do ponto de vista das percepções mais imediatas, pois que, desta vez, eu já não demonstrava a mesma tolerância, a mesma esperança. As mesmas águas que me conduziram a margem, somando-se as minhas forças, agora pareciam, na ausência destas últimas, me dragar ao fundo.

Mesmo rio, mesmo homem. Até quando?

sábado, janeiro 08, 2011

O conto da pá de cal

Olho para o sepulcro em que te depositei
Me é indiferente se estivera vazio
Ou cheio dos sonhos que não são meus

Olho para a roupa com que te adornei
A última que vestiste
Diante de meus olhos já cansados

Olho para a terra que te aguarda
Antevejo os vermes que te devoram
Penso em tudo que não foste

Olho para o coveiro infeliz
Mas infeliz é tu, que morre em vida
E ninguém aqui te verte lágrimas

Olho para a pá ao lado
E no monte de cal, a preencho
Te cubro o sepulcro em alva mancha.

Olho para a saída,
Pego minha jaqueta, e sigo
Sem precisar olhar pra trás.

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