Está vivo em nosso imaginário comum a ideia de uma pureza primitiva. Verdade incontestável, na inocência dos primeiros tempos, desconhece-se a maior parte do mal e seus efeitos, muitos dos quais só encontram razão de subsistência em sistemas sociais algo complexos, tais quais aqueles em que hoje vivemos.
Quase tão senso comum quanto esta ideia, é a tentação de voltar atrás, a este estado de coisas. Voltar para um tempo e/ou condição anterior aos erros que criamos, com o passar das gerações, e que parecem de tal forma desenvolvidos, que se mostram impossíveis (dizemos, talvez sem refletir muito) de extirpar.
Muitos usam esta idéia para justificar revoluções. A idéia de "explodir tudo" e recomeçar, dar outra chance a civilização, para que ela se torne então, de fato, mais civilizada.
O problema com este argumento, a meu ver, é que confunde dois conceitos bem diferentes. É bem verdade que a pureza primitiva implica um tipo de pureza: a ausência de certos conhecimentos e vivências simplesmente nos afasta de tomar diversos dos caminhos que tomamos, em particular, o molde sócio-cultural com o qual nos acostumamos, e sua dose fundamental de mercantilismo egoísta. Mercantilismo que teima em precificar até o que não tem preço.
Mas voltar atrás significa mudar algo? Em que recomeçar difere de fazer tudo de novo? Pelas probabilidades, sem inserir novas informações (perturbações, se preferir) em um sistema, ele tende a repetir o mesmo padrão, ainda que por vias diferentes, pois os pesos e contrapesos existentes ainda permaneceriam os mesmos. Não parece ingenuidade pensar que tudo aquilo que nos trouxe onde estamos sejam meras e sutis externalidades, ao invés de características intrínsecas, que quando desenvolvidas desta ou daquela forma, tendem a este ou aquele resultado?
Desta forma, recomeçar não teria grande configuração de mudança. Seria, talvez, simples voltar no tempo, sem que houvesse o personagem ficcioso do presente, a assistir (e tentar, com seus conhecimentos atuais, mudar o que passou).
Seria o "aprender com os erros do passado, para que não se repitam", só que sem o aprender.
Podemos concluir com base nisto que a inocência pristina é corruptível. Voltar atrás, sem deixar aos que recomeçam um legado que os permitisse agir diferente, tende a não trazer vantagem alguma.
Aí está a dificuldade e ingenuidade do argumento. Quem está em condições de deixar este legado: nós? Pretensão, não? Mas assumamos que o estivéssemos: não o conseguiríamos então deixá-lo as gerações futuras, ao invés de destruí-las, sob o pretexto de reformá-las?
Ao contrário deste conceito tão comum, afirmo que a inocência incorruptível existe, mas não onde o senso comum pensaria em buscá-la: ela está naqueles que passaram pelas provas, e não naqueles que ainda não atingiram o ponto de serem provados. A ingenua pureza da folha em branco, intocada, talvez não tenha nada a ver com a inocência, afinal. A presença ou ausência de frutos e flores é uma avaliação que se faz da árvore, e não da semente.
Um comentário:
Há que acredite no puro determinismo, corrente naturalista e cientificista, mas é por saber que se extiguisse o meio e tudo recomeçasse, renascendo novos seres e criando novos meios, a "natureza" humana realmente voltaria a criar as mesmas situações: exploradores e explorados, inocentes e culpados, sobreposições e sobrepostos; simplesmente porque o meio pode influenciar, mas não determinar. Curti ^^
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