quinta-feira, setembro 15, 2005

Perdoa, se for capaz

É tão fácil errar. Basta dizer uma palavra a mais ou a menos, trocar uma vírgula; Aumentar o tom de voz.

É tão fácil sentir culpa. Só não é tão fácil quanto culpar os outros. E é tão difícil perdoar.

O que parece difícil de entender é que o perdão é a verdadeira "anistia para ambos os lados". Não é incomum a quem odeia, guarda rancor, sofrer enquanto o odiado, o pretenso algoz (pretenso por que o outro é sempre o único culpado, nós sempre inocentes, incrível, não?), as vezes nem se deu conta que seus atos pudessem ferir. E se não teve a intenção, pode ter culpa nenhuma, ou mais frequentemente, meia culpa, mas chamá-lo de culpado, causador, é arriscar ser parcial, usar de dois pesos e duas medidas.

Todos erramos e não digo seja incomum, pelo contrário, errarmos premeditadamente, com sangue frio, com intenção, com tempo. É algo frequente e até encorajado em muitos círculos que não se deixe barato, que se vingue, que se use a crueldade em retorno a crueldade, que se foi inicialmente praticada por alguém sem a intenção de ser cruel, ao ser retornada a este com sangue frio, está se dando um castigo maior que a ofensa, o que nem Moisés, no meio de um povo rude e inculto, necessitado de duras penalidades civis para coibir seus impulsos criminosos, ousou recomendar.

Quem perdoa talvez liberte, mas é certo que liberta-se. Se outrém nos odeia, será que o problema deveria ser nosso? Parece simples ver que se alguém nos traz um presente, e não aceitamos este presente, ele fica com quem o trouxe. Se no entanto, o aceitamos, é nosso. Aceitar o ódio é opção, como também o é aceitar o fato que erramos, que erram conosco, e seguir em frente, o que constitui sempre em sinal de alguma maturidade. Ficar escravo de acontecimentos que já tiveram sua hora, que não podem ser desfeitos, e ficar bancando o justiceiro, como se amanhã ou depois também não fosse pisar na bola, precisando de compreensão, é ficar preso, amarrado ao passado. Naturalmente que devemos transferir a responsabilidade do erro a quem errou, não aceitando jamais que se faça uma injustiça a quem quer que seja. Devem haver penalidades, mas sobretudo, devem existir meios de minimizar os males cometidos, e não creio que criar a cultura da crueldade injustificável seja favorecer, pasmem, a justiça!

Nos tempos imediatamente anteriores a Moisés, no seio da mesma sociedade fragmentada em princípios tribais, a guerra por questões menores era um estado quase que permanente. Se observarmos racional e desapaixonadamente a diretiva mosaica do "olho por olho", aos dias de hoje, a veremos como cruel. Mas ao recomendar isto a um povo bárbaro, Moisés impôs grande progresso, pois se alguém cortasse o dedo de alguém, não era incomum provocar-se uma guerra objetivando não cortar o dedo do agressor, mas dizimar sua familia, sua esposa, seus filhos, seus pais, seus irmãos, quando não sua tribo, para varrer, enfim, da face da terra, tudo o que fosse relacionado ao agressor.

Se a pena de morte, para alguns de nós (e subscrevo-me), é algo indesejável, acho difícil que, nos dias de hoje, mais que uns poucos insensatos concordassem com a idéia de imputar tal pena aos familiares do agressor, como se pudessem estes compartilhar da responsabilidade do crime cometido apenas pelo fato de existirem. É natural que pudessem, por hipótese, existir cúmplices, mas cada um é responsável por si. Este negócio de sermos influenciáveis não nos isenta do mal que tenha tido origem em o fazermos ou deixarmos de impedir que se faça.

É compreensível que povos inteiros, e indivíduos ou pequenas agremiações dentro de outros povos, ainda estejam, mentalmente, vivendo nos tempos de moisés. Mas aos demais cumpre considerar que o tempo passou, os pactos sociais maturaram, e muitos líderes, mártires, pensadores, professores, pessoas referenciais enfim, das mais diferentes ideologias e culturas, apresentaram diferentes propostas, e quem quer que se dê ao trabalho de estudá-las, mesmo que não concordando com seus preceitos, poderá observar que há muitas formas de olhar para a mesma questão.

Até no seio dos decendentes da cultura que abrigou os prceitos de Moisés, surgiu, muitos séculos depois, um homem admirável que não dizia olho por olho, mas perdoar setenta vezes sete. Que ao invés de mostrar a idéia de Deus como sendo líder dos exércitos, mais cruel, ciumento, vingativo, que o mais rancoroso dos seres humanos, o apresentava simplesmente como o pai.

Na encosta de uma região então muito verde e rica de natureza, diante de uma multidão que cochichava e se admirava, usou a palavra amor, e ao pronunciá-la, calou a todos, que se entreolhavam sem saber o que dizer.

Amai aos demais como a si mesmo. Mas nós não amamos, pois quem se ama não se mata. E quem não perdoa, pode até não dar-se conta, pode até prosseguir por décadas com sua mágoa, mas envenena-se, enfraquece-se, e morre.

Após anos perseguindo o irmão de sangue que considerava traidor dos costumes de seu povo, um homem que viveu a muito tempo atrás, o encontrou, e cheio de ódio, o espetou com a espada. O irmão ferido mortalmente, sorriu e disse: Eu te perdoo, e morreu.

O outro, largando a espada, só ali se deu conta do que havia feito. Só após todos estes anos, quando consumada sua paixão vingativa, percebeu que os anos haviam passado, seu velho pai morrido de desgosto por que, tendo bom coração, procurava aplacar a ira deste seu filho, sem sucesso. Amava ambos os filhos e não os havia criado para odiarem-se. Não culpava o filho que havia partido, tido por traídor pelo outro irmão, ainda que, à época, ele fosse tido como traidor pelos costumes. Sabia ele que o delito não era tão grave a ponto de não poder ser reparado.

Alguns homens petrificaram seus próprios corações e nada vêem senão com as lentes do interesse p?oprio, egoísta. Não medem esforços para alcançarem o que querem, pois se julgam superiores a todos os outros homens, que então, são apenas meios de realizar seus objetivos, que podem ser descartados quando não mais têm serventia.

Mas aos demais, que possuem ao menos uma veia pulsando dentro de seus corpos, é imperioso que raciocinem antes de seguir a trilha da vingança, por que, obstinados, podem seguir por ela sem saber exato onde ela leva.

As tradições religiosas criaram o conceito de inferno, e algumas delas honram a idéia da existência de um ser que seria a origem, ou o coordenador, do mau na terra. Se, em princípio, toda idéia é respeitável enquanto hipótese, interrogo qual o motivo pelo qual alguns se apegam tanto a tal dogma, se ele desvia o olhar do homem para um conceito de onde fica a dúvida se poderia ou não estar o mal, sendo que existe um lugar onde ele certamente existe, e se temos esta certeza, podemos combaté-lo. Este lugar é o nosso próprio ego, pois é em nós que reside o mal do mundo, e não nos outros, e menos ainda em um único ser em particular, a quem seria muito fácil transferir toda a responsabilidade pelas coisas e lavarmos as nossas mãos.

É em nós que reside o mal do nosso mundo interno, e a estes, só nós mesmos podemos aplacar, não tanto ao sermos perdoados, mas, talvez, ao perdoarmos, de toda alma, se disto formos capazes.

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