quarta-feira, setembro 07, 2005

Montanha Abaixo

Um sopro de vento passa sorrateiro pelo cume da montanha. E atrás dele outro, e mais outro.

Não fosse tão gelado, se alguém estivesse ali, no cume da montanha, sentiria neste sopro apenas uma leve brisa, a levantar os cabelos ou acariciar o rosto.
Mas esta sucessão de ventos, que ali chega, é o suficiente para deslocar um pequeno bloco de neve. Este pequeno bloco cai contra um bloco de gelo mais sólido, e nele rola, tocando a neve mais abaixo. Ao fazê-lo, já com certa velocidade, vai acumulando mais neve. E assim surge uma bola de neve de considerável tamanho, que passa levando tudo o que encontra pelo caminho, até acertar as árvores de poucas folhas perdidas no meio do caminho, levando consigo o ninho de passarinhos que ainda nem estava pronto.

E dentro da gigante bola de neve, ainda está aquele pequeno bloco, tal qual estava lá em cima, mesmo que se confunda com as camadas que lhe ficaram sobrepostas.

As vezes nossa vida é assim, como a história do bloco de neve. Rolamos montanha abaixo, adquirindo camadas e camadas das mais diversas coisas, boas e ruins, escorregando aqui e mais ali, até que chega a algum lugar de onde parece que não se pode passar. De tal sorte que quando a nossa vida descamba, não em alguma árvore, mas em alguma série de acontecimentos, já não sabemos se somos mais aquele bloco de neve ou se somos a neve que está em volta de nós. Talvez sejamos ambos, eu não sei. Se não me agrada a idéia de pensar que a gente não muda, menos ainda agrada a idéia de a gente não conseguir evitar este acúmulo de coisas, especialmente as coisas que não gostaríamos de acumular; A idéia de não sabermos pra onde vamos. Só dá pra sentir quando se cai, e mesmo assim, as vezes quando já se está com certa velocidade e já não dá mais pra evitar.

É verdade que vivendo a gente ganha muitas coisas. Experiência, sobretudo, por que só mesmo a imaturidade nos permite achar que sabemos o suficiente, ou ainda, que sabemos mais que o suficiente. É necessário tempo para perceber que não há manual de instruções para percorrer o caminho a ser trilhado, e os mapas que nos serviriam para descobrir qual é este caminho, dentre tantos outros, não é senão mera aproximação, como um rabisco, uma bússula, nos dizendo: "vá mais ou menos naquela direção, não sei pra onde você vai, nem quanto tempo leva pra chegar lá".

Mas não consigo deixar de pensar que ao mesmo tempo, parece que com o tempo, se perde alguma coisa. Aquele idealismo absoluto se torna sensato, relativo, e se isto é muito bom para a vida prática, é um tédio total para a vida de imaginação. A capacidade de acreditar nas pessoas, de achar que elas dizem sempre a verdade e que buscam o que é bom, também se relativiza, ao ponto de alguns a extrapolarem, de modo a não confiarem em nada, nem ninguém, suponho nem mesmo em si mesmas.

Parece que as vezes estamos sempre vendendo ou trocando alguma coisa que não tem preço, por outras coisas que, a bem da verdade, não tem valor. Trocamos algumas gramas de pureza por toneladas de quinquilharias que, ocupem mais ou menos espaço, pesem mais ou menos, não são senão migalhas se formos usá-las para preencher o vazio de nossos corações.

Falo daquele vazio de olhar este mundo tão grande lá fora e não saber exatamente qual é o seu lugar nele. É o vazio de perceber que há tantas pessoas na mesma condição, ou até pior, vendendo a alma para comprar um lugar qualquer, mesmo que não seja o seu.

Vejo estas pessoas que precisam ir e vir, por que aqui nunca está bom, mas vão para acolá cheias de esperança, e quando lá chega, o que era "lá" vira "aqui", e então precisam se mudar, parecem não perceber que onde quer que elas vão, há uma certa bagagem que necessariamente levam com elas, e que apesar de pesada n'alma, fingem que ela não existe, a varrem para baixo do tapete (carregar malas pesadas usando um tapete não parece muito ergonômico, parece? Deve dar uma baita dor nas costas)...

As vejo e sei que no fundo, só o que me diferencia delas é que tenho preguiça de levar minha bagagem de lá para cá, então fico aqui mesmo, o que certamente não conta a meu favor.

Seres humanos que somos, há tantas teorias tentando nos descrever. Uns nos limitam nas causas, outros nos efeitos, mas de qualquer forma, ainda que definissemos exatamente como é a humanidade, não conseguiriamos definir como é cada indivíduo. Sim, somos todos parecidos. Mas se fossemos idênticos na forma e no pensar, em algum momento, discordariamos e jamais seriamos os mesmos. E, apesar de, insisto, possuirmos muitas semelhancas, são as diferenças que nos definem. Creio que no dia em que pararmos de tentar mandar no mundo, de tentar forjá-lo a nossa imagem e semelhança, e em especial, o dia que desistirmos de tentar fazer os outros verem o mundo com nossos olhos, pensar a nossa maneira, e concordar com nossas necessariamente limitadas conclusões, será o dia em que começaremos a entender quem somos, por que, para isso, parece ser necessário entender quem nós não somos.

Por vezes, faz-se imperioso admitir que podemos estar muito longe ainda de sermos quem podemos (ou poderemos) ser.

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