Algumas expressões surgem naturalmente como se fossem verdades tão simples, tão inquestionáveis:
- "Preciso ir"
- "Agora não posso"
- "O tempo não espera"
- "Tenho tanto a fazer"
- "Gostaria quer o dia tivesse 48 horas"
E, no entanto, o tempo não é esse monstro inexorável que nos rouba o fôlego da vida, dia após dia. O tempo é o que queremos fazer dele. Não culpemos o tempo pela angústia da pressa que nos move o íntimo. Esta angústia de não saber quem somos e o que queremos, e dentre o que queremos, não sabermos o que podemos, não foi implantada em nós pelo tempo. Fomos nós que a semeamos, que a regamos. O mato já cresce sozinho, sem uma mão que o cultive, haveremos de nos queixar se cresce ainda mais rápido, e fica ainda mais forte, se recebe auxílio?
O tempo não é essa coisa de os segundos passarem, um contador inexorável que conta de trás para a frente, do dia em que respiramos o ar deste mundo até o dia de nos despedirmos dele. O tempo não nos impõe estas necessidades, verdadeiras ou inventadas, destas que nos levam a precisarmos (ou imaginar precisarmos) correr atrás da vida como se ela nos escapasse das mãos feito fosse areia pelos vãos d'entre os dedos.
A vida não é escrava do tempo. Nem foge, nem vai a parte alguma. A vida está aqui, está ali. Está em seu coração, está no meu, está nos corações que já foram e nos que ainda não vieram. A vida é uma sinfonia tão grandiosa que infelizmente muitos escolhem não vivê-la.
É uma sinfonia tocada por todos os instrumentos, com todas as notas, com todos os timbres, para todos os ouvidos e gostos. É uma sinfonia que se desprende de sua grandeza para deixar participar do mais ínfimo dos instrumentos, mas que soa encorpada e forte quando permite entrar os mais afinados e musicais deles.
É uma sinfonia em que tomam parte sem saber desde os minúsculos seres microscópicos do oceano, as plantas mais simplórias, os menores vermes que vivem debaixo da terra ou o limo das pedras, e gradativamente até os primeiros dos arcanjos, passando naturalmente em algum ponto por cada um de nós. É uma sinfonia que pode ser maravilhosa sem qualquer um dos seus maestros ou músicos, mesmo o mais elevado deles, mas que não é perfeita senão quando todo o conjunto atua, mesmo sem que o saibam.
Os aprendizes tem a liberdade de escolherem seu caminho, constroem seus instrumentos as próprias custas. Descobrem e descobrem-se, cada qual no compasso de tempo que lhe é próprio, mesmo quando a pressa se lhe apresenta, mesmo quando desiste e nada pensa fazer, pois que estes estados são transitórios como o próprio tempo o é.
O tempo é a medida dos eventos momentâneos, da sucessão de coisas que acontecem em intervalos mais ou menos constantes. O tempo não é a medida da perfeição ou da imperfeição, nem da sabedoria ou da ignorância, o tempo não mede nem determina coisa alguma que possa ser considerada ao longo da sinfonia majestosa da vida.
Não há instrumento mais ou menos digno, caminho mais ou menos perfeito, não há músicos mais ou menos capazes. Os que podem mais, fazem mais, os que ainda não podem, cumprem exatamente com o papel que lhes cabe, e nada os impede de ascender a papéis que requerem maior disciplina, se por este caminho decidem trilhar. Os que completam um papel podem ascender a outro, deixando a vaga aberta para um que a deseja e luta por ela.
Todo o desequilibrio, toda a sorte de problemas, surgem principalmente da falsa idéia que os músicos fazem de si mesmos e de seu papel. Uns querem ser agora o que ainda não podem, outros querem ser menos, querem fazer menos, querem ser outros músicos, ou pensam nada querer.
E são livres para tomar o caminho que trilharem, para produzirem o ritmo que lhes aprouver. Livres só não são para se furtar ao resultado que obtiverem, embora possam sempre retomar o trabalho de onde o deixaram, ou mesmo se dedicarem a outras tarefas, assumindo tão somente o fardo de encontrarem condições menos favoráveis do que na primeira tentativa, visto não terem eles próprios melhorado o ambiente em que se encontram para afinar os seus instrumentos.
É a pressa, a pressa de querer não-sei-quê, de fugir para não-sei-onde, de temer tudo e nada; É a pressa que desloca o músico da arte de tocar seu instrumento. Que não o deixa perceber onde ele está e por quê ali está.
É mais ou menos esta idéia que estava por trás do título deste espaço, "Somos quem podemos ser", idéia que nunca consegui expressar por que nem mesmo tinha dela senão vaga forma, cujo conteúdo ainda não me é inteiramente claro.
Este pequeno instrumento desafinado, que tem muito a aprender sobre todas as coisas, dos vermes da terra e os arcanjos do espaço infinito, coloca aqui o seu manifesto de vida. Não faz com isto um convite ou um desafio a ninguém, nem a adotar nem a questionar concepção de vida alguma. Não teria tamanha pretensão.
O caminho que trilho não é mais nem menos digno ou verdadeiro do que o de ninguém. Os instrumentos que toco estão longe de contribuirem com uma nota musical que o fosse. A estrada que existe a minha frente, cujos detalhes sei tanto quanto todo mundo sabe ou nada, que é a mesma coisa, é a minha estrada e a mais ninguém compete trilhá-la. Ainda que outros músicos construam estradas algo paralelas a minha, ainda que eventualmente elas cheguem a um ponto em comum, a cada qual compete seguir pela sua estrada. É um caminho que se trilha só, mas que não precisa necessariamente ser um caminho solitário. Não é necessário fechar as interesecções da estrada, não é necessário fazê-la em solo tão baixo e inundado que todos a desprezem ou em elevado tão inacessível que todos nem sonhem em construir tão alto, por que se no primeiro caso não quero, no segundo nem poderia.
Há algo que interliga todos os músicos, algo que cada um compreende a seu modo, conforme sua identidade e suas capacidades, algo que eles sequer sabem definir durante a maior parte de seu trajeto.
Este algo que os une é a própria melodia que não apenas tocam, mas ajudam a compor, muitas vezes sem o saber. O tempo é o palco, a vida a matéria bruta que forma todos os instrumentos, e a melodia que executamos e compomos se chama Amor.
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