sexta-feira, janeiro 28, 2005

Através dos olhos teus

Li certa vez uma frase (que acredito já ter citado aqui) que provocou um certo desconforto filosófico em mim.

Não lembro a origem e menos ainda a autoria, e nem a frase inteira, mas era alguém definindo a infelicidade como sendo a tentativa de tornar permanente as coisas transitórias.

De onde eu vejo, não é a causa de toda a infelicidade, existem inúmeras outras razões. Mas é fácil ver que se as coisas que tanto gostamos nos escapam por entre os dedos como fossem areia, que as coisas que vemos de uma forma hoje se mostram de outra amanhã, ou pior, as coisas que se mostraram de uma forma ontém se mostram nada daquilo hoje, então, nosso chão rui, nossas pernas fraquejam, nossa força se esvai, nosso mundo deixa de fazer sentido.

E aquela necessidade de recomeçar a vida, mais uma vez... De onde tirar forças? Porque, normalmente, a sensação que temos quando deixamos um contexto que nos era próprio, conhecido, manejado, para adentrar novamente em terreno desconhecido, é a de que levamos conosco o peso das dificuldades, do que consideramos que deu errado, mas parece que as coisas boas ficaram para tras, que não as podemos trazer conosco, pois foram ilusões, ou, ao contrário, realidade demais. E, de fato, é bem difícil conseguir perceber, senão com o tempo, que é justamente elas, as coisas boas, que nos dão forças para prosseguir.

Nem todas as coisas que escrevo são por experiência própria, embora eu gostaria de pensar que fossem. Algumas coisas que escrevo nem são minhas, outras ainda não são quem eu sou, apenas quem eu gostaria de ser, um dia.

Mas posso falar um pouco sobre recomeçar. Houveram algumas circunstâncias em que me vi com um passado inteiro para trás, e não conseguia ver nele sentido. Para a frente, um futuro cego. Naturalmente cego, por que, sem um presente, não da para pensar num futuro. O futuro não é algo definido, marcado, pré-destinado, mas senão principalmente a consequência do que fazemos hoje.

E lembro perfeitamente, bem por que não faz tanto tempo assim, da necessidade de "fazer das tripas coração". De inventar a fé que não tinha.

Sempre gostei daquela imagem: "Quando cair, levante, bata a poeira, e continue andando". Mas nestas circunstâncias, nem dá tempo de bater a poeira, você de alguma forma precisa encontrar forças e seguir andando, com poeira e tudo.

E eu acreditei que podia fazer isso tudo sozinho. E em parte estava certo, em parte não. Ao escolher um caminho solitário, eu escolhi o caminho mais difícil. E deixei de sentir. Por anos. Por medo.

Nem medo, nem tristeza, nem felicidade, nem raiva, nem dor, nem compaixão, nem ódio, nem nada. O vazio.
Que um dia se torna desesperador. Por que é guardar uma amargura contra si mesmo. É condenar-se por ser humano, é não aceitar que se é o que se é: alguém que por mais queira acertar, ainda vai cometer enganos. Os comete todos os dias. Alguém que precisa da força da família, por mais que momentaneamente, esta familia esteja desencontrada. As vezes somos nós mesmos os elos que a família precisa para se reajustar.

Eu fechei-me em minha armadura, armado com lanças afiadas, pronto a cortar a garganta de quem quisesse chegar perto.

E num processo algo lento, encontrei razões para sentir novamente. Para permitir que o coração agisse onde antes só havia a razão (e nos julgamos senhores da lógica, nós, que tanto erramos!)...

Comecei a sentir as pessoas novamente. Eu digo isto de uma forma que talvez nem todo mundo esteja apto a entender. Eu tive esta faculdade, algo rudimentar, algo inexata, de sentir o que as pessoas sentem. Podia saber se estavam tristes, ou com raiva, ou felizes, e as vezes até o por que, e isto era muito bom, por que eu podia me aproximar delas e sabia exatamente o que dizer. Mas isto ficou meio obscurecido. Eu cheguei a acreditar que era ilusão da minha cabeça, ou que era uma maldição, afinal, neste mundo, existem razões de sobra para não se acreditar nas coisas, e talvez poucas para se acreditar em qualquer coisa. Meu lado filosófico-ciêntifico-empirico é muito forte, por mais que eu negue. Noutras palavras, meu lado "são-tomé", que só acredita vendo, é maior do que talvez devesse ser.

E fui tentando retomar minha vida. Mas surpresas inesperadas aconteceram.
E são elas, as surpresas inesperadas, que nos permitem ter esperanças nestes recomeços...

Eu vi, num olhar, apenas num olhar, algo que me encantou e me assombrou.
Eu vi a mim mesmo. Não o eu que eu imaginava ser, nem de antes, nem de então. E certamente não tive uma visão de futuro. Eu vi naquele olhar quem eu queria ser. Mas não como naquelas fantasias que a gente cultiva, de ser uma pessoa melhor. Nenhum super-herói.

Eu vi alguém que podia ser exatamente o que eu era. Com algumas pequenas diferenças, apenas.
Este alguém que eu vi não precisava mais da armadura, ou de espinhos, ou de nada. Não precisava mais de máscaras.
Este alguém não precisava sonhar ou esperar em ser a pessoa que desejava ser daqui a 100 anos. Este alguém podia sê-lo agora, imediatamente. Por que não precisava ser perfeito, apenas fazer o que estivesse a seu alcance.

Este alguém era eu. Apenas eu. Com o que tenho de bom, de ruim, de estranho, de diferente, de normal, de complicado, de simplório.

Me vi pelos olhos de alguém. Estava dentre as coisas que julgava ser impossível.

Naquele instante, o que ocorreu é que me senti amado. Percebi que poderia amar, ainda que não soubesse (e não sei) exatamente o que é o amor.

Não estou falando de paixões. Nem de romances. Nem de qualquer outra coisa que inclusive eu mesmo possa confundir como sendo amor. Eu senti uma paz tão grande que não sonhei pudesse existir.
Tudo de repente parecia fazer sentido. Eu já não precisava mais de tantas explicações racionais para tudo.

E de repente tudo se abriu diante de mim. Meu passado, meu presente, meu futuro. Mas eu me assustei. Quem não se assustaria? E é claro, eu confundi as coisas, eu me perdi, eu tive medo, eu tentei fugir disso tudo, vestir a armadura de novo.
Mas o homem que sai da armadura já não tem o mesmo tamanho daquele que entrou nela, em primeiro lugar.

E eu fui egoísta. Profundamente egoísta. E covarde. Como provavelmente ainda serei muitas vezes na vida, não me iludo mais quanto a isto.

Eu até me entendo. Afinal, ninguém muda do dia para a noite. Ainda que descubra quem é, do dia para a noite.

E a gente nunca sabe o que precisa para que isto aconteça. Acho que para uns pode ser o resultado de anos de estudo e vivência. Para outros, pode cair um vaso da cabeça, ou estar olhando o mar, e de repente, ter aquele estalo:
- Eureka! Descobri quem eu sou.

No começo sentia pena que nem todo mundo pudesse entender isso. Mas então compreendi: eu mesmo não podia, até bem pouco tempo atrás. Acho que todos nós temos nossa hora. Não é minha responsabilidade tentar acelerar ou retardar este processo, pelo contrário.

Comigo foi algo inexplicavelmente mágico: apenas um olhar. Em uma noite estrelada, fria, e bela.
O olhar mais doce e perfeito. Nem os anjos dos céus jamais me olharam desta forma.

Dizem que nós humanos não experimentamos a perfeição. Eu acho que talvez não consigamos honrar a perfeição.
Mas se isto que descrevo aqui não é perfeito, então não sou capaz de imaginar o que seria perfeição. E o que é mais incrível: Não preciso imaginar. Eu vivi.

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