sábado, julho 31, 2004

Inumeráveis

Tão únicos e tão iguais, somos bilhões.

Eclodimos em meio a comunidades as mais diversas. Recebemos daqueles que vieram antes de nós sua visão do mundo e a adaptamos mais ou menos ao que vamos adquirindo, sem falar no que trazemos conosco.

Somemos isto tudo e teremos os traços balisadores de nossa personalidade, que, embora efeitos mais ou menos confusos, nos permitem fazer uma idéia de quem somos, do que pensamos.

Alguns em tenra idade, com certa determinação, outros tardiamente, frequentemente mais por força das coisas do que por uma motivação pessoal, todos acabamos encontrando, se não nosso lugar no mundo, ao menos as tendências que acabam por definir que tipo de vida teremos, o que serão nossas atividades e interesses, os grupos sociais em que seremos admitidos, ou que nos faremos admitir, e assim por diante.

Nos deparamos diariamente com conflitos co m relação ao que pensamos e queremos, pois as demais pessoas podem não pensar como nós, podem não querer as mesmas coisas que nós, ou ainda, podem querê-las, mas só para si.

Do egoísmo mais ferrenho e assassino, nosso ou alheio, até a caridade mais desinteressada (e aqui uso o sentido amplo para caridade; Não só a doação material, menos ainda a esmola, mas a dedicação verdadeira e motivada, em suas mais variadas nuances), vemos de tudo um pouco, tanto em nosso meio, nossas comunidades, como em toda parte do mundo, através de relatos ou dos meios de comunicação mais diversos.

As vezes não tomamos parte do mal, mas tampouco estamos ativos no bem, na construção de valores humanos dignos, quer individualmente, quer em nossas famílias ou na sociedade como um todo, e "não fazer o bem que nos esteja ao alcance constitui um mal em si mesmo"; Estamos em cima do muro.

As vezes, vamos além. Somos corruptos, ativos ou passivos, queremos levar vantagem, dizemos que se não fizermos, outros o fariam em nosso lugar. Justificamos de todas as formas. Mentimos, enganamos, aos outros e a nós mesmos.

A televisão nos mostra isto diariamente, porém, há algo que ela não mostra, provavelmente por que não dê audiência, provavelmente por que nós mesmos, os telespectadores, não tenhamos interesse em saber.

O que ela não mostra é que nunca se fez tanto bem no mundo, e, apesar da explosão generalizada de crimes que vemos por todo o globo, o progresso se faz, de forma insofismável.

Quando, dentre as facções hebraicas, se ofendia a um indivíduo, era frequente que este, em represália, dizimasse não apenas com o seu ofensor, mas com toda sua família, em especial seus decendentes, e era frequente isto deslanchar em guerras entre tribos, que por vezes aniquilava completamente com toda uma linhagem de seres humanos.

Quando a lei civil, disfarçada de lei divina, cujo líder fora Moisés, instituiu a pena do "dente por dente, olho por olho" ( da qual Ghandi disse, já em nossos tempos, que "olho por olho e a humanidade ficará cega"), houve sem dúvida um avanço, e, embora as excessões perpetuassem ainda, acabou por tornar-se a regra de proceder daquele povo como um todo, permitindo que ao menos fossem poupadas as vidas dos ditos inocentes, aqueles que não eram responsáveis pelo delito.

Mais tarde, ao se estabelecerem as bases do cristianismo, Jesus estabeleceu que as ofensas fossem perdoadas "não sete, mas setenta vezes sete", iniciando nova etapa nos costumes humanos e em suas relações, costume este que, no entanto, foi esquecido e deturpado por grande parte daqueles que deveriam ser responsávels pela divulgação desta proposta.

Exemplifico aqui em cimal da tradição judaico-cristã, pois ela é a mais comum dentre as ordens religiosas difundidas no ocidente. Porém, todos os povos tiveram seus messias e sua doutrina moral, que, sempre se aproximaram, senão na forma, indubitavelmente no conteúdo.

Ainda vivemos, muitos de nós, no olho por olho. Na china, as execuções sumárias são frequentes e seu custo monetário corre por conta da família do acusado (digo acusado, pois quem garante, em um sistema autoritário, a transparência e neutralidade do sistema judicial?). Imaginem, um de vocês, sendo levado a prisão por crime não cometido, processados, executados, e a mãe de vocês receberem a conta? Há justiça, ou há vingança cega?

No oriente médico, o fundamentalismo islâmico prega o autocídio como ordem divina. Não bastasse, isto ocorre em atos que põe a termo a vida de inocentes, os quais acredita-se serem glorificados como mártires, na vida no além.

Aqui, em nossa terrinha, "Abençoada por Deus", é comum a perseguição e a justiça pelas próprias mãos. Muitos defentem a pena de morte, e a justificam pelo exemplo, isto é, que os potenciais transgressores da ordem pensariam duas vezes antes de cometerem seus atos tresloucados, sabendo a gravidade da pena a que estariam sujeitas.

Isto não é verdade. Uma pessoa que comete um crime hediondo, especialmente ainda se o faz em plena consciência, é um doente psicológico, independentemente das razões. Não será a perspectiva de punição que lhe tolherá a liberdade de ação. A prova existe nos EUA, onde os estados que adotaram a pena de morte não conseguiram jamais a redução dos crimes hediondos, pelo contrário, são, em geral, recordistas.

O que a pena de morte induz é a cultura da violência. Torna-se legítimo matar diante da ofensa. Alguém ofende a ordem social, e o estado, defensor da sociedade, executa o ofensor.

Ora, se é legítimo matar diante de uma ofensa, a população passa a agir desta forma. E aqueles que vivem, ou pensam viver, por sua própria lei, não terão impecilhos em ter por ofensa as coisas mais banais.

Somos bilhões. Mas há aqueles que se destacam nestes bilhões. Hitler se destacou pelas suas atrocidades.
O pai que teve seu filho assassinado e pedia pela abolição da pena de morte, aplicada ao assassino de seu filho, destaca-se por compreender inútil o remédio a que a sociedade impõe.

A pena de morte é o decreto de falência da responsabilidade social do estado para com os seus cidadães. E o estado não é um ente real, não é um ser, é uma estrutura abstrata que existe com a única função de servir à cidadania. Enterra o problema no quintal, varre-o para baixo do tapete, mas não tenta resolvê-lo.

Somos inumeráveis. Somos bilhões. Somos únicos. Somos assassinados, alguns pouco a pouco, outros pelos desvairados nas esquinas, e outros ainda, por aqueles que deveriam os proteger.

Há muito a ser feito. Mas volto no ponto: nunca se fez tanto bem na terra. Os crimes hediondos que hoje nos chocam e são cometidos na obscuridade, antigamente ocorriam a luz do dia, e ninguém se importava com eles, aliás, alguns eram espetáculo grosseiro, onde se ria do sofrimento daquele que, sendo único, poderia ser qualquer um de nós.

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