terça-feira, outubro 26, 2004

Ensaio sobre a pureza I

Falo-vos, eu, que sou impuro, da pureza. Certamente falarei impuramente, já que não posso emular o que não sou.

Me parecem existir dois tipos de pureza, a pureza da ignorância, e a pureza da experiência.
Nosso mundo só valoriza a primeira, e há quem inclusive não reconheça a existência da segunda.

A pureza da ignorância tem seu auge nas crianças, mais ainda nos bebês: como no principio pouco sabem, não há, aparentemente, nenhum mal encerrado nelas. Seu sorrisso derrete mesmo alguns corações endurecidos. Seu olhar inocente cativa-nos e nos faz imaginarmos: "onde foi que perdi a pureza, a inocência?".

Conheci alguns adolescentes e mesmo adultos que de alguma forma conservam este tipo de pureza. Ela geralmente se manifesta como uma ingenuidade patente, tão evidente que é preciso ser realmente um mau-caráter para se aproveitar destas pessoas.

Mas quando diante desta pureza se apresentam os conceitos deturpados, a informação doente, o convite ao despenhadeiro moral, ela raramente resiste, por que não possui conhecimento, não apresenta argumentos. É o quadro branco que não resiste ao vandalismo das tintas do mundo. Ela não é senão corruptível, ainda que possa ser tida como uma das mais belas coisas do mundo.


Num outro extremo, existe a pureza da experiência. É a pureza de quem conheceu o mal. Não necessariamente foi uma pessoa má, ou foi vítima do mal, mas de alguma forma esteve exposta a ele, por tempo suficiente para reconhecer suas consequências daninhas. Talvez por que o viveu, como vítima ou algoz, talvez por que acompanhou alguém que o viveu, mas de qualquer forma, o conhece e sabe que tirando o verniz atrativo com o qual se disfarça de um grande bem, um grande prazer, um grande valor, o mal é sempre o mal, que não é uma qualidade em si, mas ao contrário, um vazio, uma falta que vende a si mesma como a argamassa capaz de tapar o vazio que existe em nós, como se fosse um desses remédios que tomamos para enganar a fome, mas continuamos de estômago vazio.

Esta pureza é a pureza que distingue o bem proceder de todos os sofismas, todas as armadilhas, todos os desequilibrios. É a pureza do "sei o que quero, e sei o que não quero".

É a pureza da coerência, e não se pode ser coerente, sendo ingênuo.

E aqui não estabeleço um juízo de valores. Cada um de nós constrói seu caminho como pode, com o que acredita, e para que imagina serem os objetivos de sua vida. Sobre este respeito, todo homem é livre, ainda que poucos entendam que para ser livre é preciso ser responsável, pois só há duas coisas das quais somos escravos: das consequências de nossos atos e da impossibilidade de lavar as mãos diante das escolhas que nos são sugeridas. Digo impossibilidade por que podemos fazê-lo, mas não conseguimos, com isto, ter as mãos limpas, e nem tampouco a consciência.

Há mais sobre o assunto, mas acredito que as circunstâncias não sejam favoráveis. Deixarei o tempo cumprir sua função, de modo que também eu possa cumprir as minhas. Por enquanto, palavras ao vento, que as carrega para onde quer.

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