sexta-feira, agosto 27, 2004

Somos quem podemos ser

Shakespeare escreveu certa vez que "sabemos quem somos, mas ignoramos o que podemos nos tornar".
Bem antes dele, Sócrates relata a assertiva "conhece-te a ti mesmo", e dedica-se a propagar a idéia de que não sabemos praticamente nada do que julgamos saber, o que poderiamos ler como: não nos conhecemos.

Se somassemos as sentenças, poderíamos ter algo como "Não sabemos quem somos, e pior, ignoramos o que seremos".
Mas não é esta a minha intenção aqui. Se realmente nos faltam meios de nos conhecermos completamente, é inegável que a cada dia descobrimos um pouco mais. E que o que descobrimos pode ser surpreendente.

Concordo, relativamente, com a narrativa que "ignoramos o que podemos nos tornar". É bem verdade que, independente de realizarmos ou não nossas metas, podemos, até certo ponto, defini-las. Mas raramente conhecemos nossas possibilidades. Frequentemente, até, ignoramos o que queremos para nós.

Não sabemos o que o futuro nos reserva. E não implico aqui que o futuro nos reserve algo, que haja qualquer espécie de determinismo guiando nossos destinos, pois a colocação independe disto.

Há pouco mais de dez anos atrás eu provavelmente tinha um conjunto bem definido de metas. De tantas, não sei contar quantas se realizaram, mas certamente são poucas. E não há, ao menos em geral, qualquer frustração no fato de não as ter realizado. É que a pessoa que me tornei é, em grande parte, diferente da pessoa que alimentou os sonhos. O que me era fundamental sob muitos aspectos, deixou de ser. O que me era importante, é hoje, em grande parte, memória de um anseio infantil, uma lembrança boa de tempos diferentes, de uma mente diferente, que viveu experiências diferentes, ou ainda, que passou de forma diferente pelas mesmas experiências.

As vezes me perco nas saudades de outros tempos, tempos em que eu desfrutava de ideais ingênuos e tudo parecia possível. O mundo se abria, as dificuldades davam passagem. Até o sofrimento e a dor pareciam ter um certo charme, um certo romantismo, um certo ar de importância.

Eu tinha o mundo em minhas mãos. Hoje, há dias em que julgo o carregar em minhas costas. Pobre de mim, em minha ignorância, pois se assim fosse, meu mundo seria bem pequeno.

Há momentos em que me invade a nostalgia, pois, em algum ponto da vida, aquela alegria parece perdida. A rotina e a falta de objetivos mais distantes, mais aparentemente grandiosos, parecem sufocar a vontade de viver, de inovar, de construir.

Tudo parece difícil, caro, impossível. Crio ideais imaginários de como a vida deveria ser, e , na impossibilidade de os atingir, tranco-me em um círculo de lamuriações.

Porém, felizmente, a vida parece estar disposta a suplantar algumas de minhas deficiências. Eis que, em momento de clareza, percebo que me tornei parte do que almejava conquistar, e em alguns casos, fui além. Se não de forma integral, ao menos de forma que o meu "eu" atual julgava impossível até instantes atrás.

Eu não sou perfeito, obviamente. Mas dentre meus maiores defeitos, estava agir sempre por impulso egoísta. Fazia o que me era mais cômodo, doesse a quem doesse, e pensava nas consequências depois, quando pensava. Se eu nunca mais agi assim? Quase todos os dias. Mas hoje há excessões, e elas me pareceriam impossíveis há alguns anos.

Há bondade em meu coração. Pouca, talvez, diante da bondade alheia que recebo. Mas há esperança.

Os ideais de outrotra, ainda que empolgantes, eram frágeis, superficiais, megalomaniacos.

Pouco a pouco realizo coisas hoje em dia que fariam o megalomaniaco que eu era sentir um mix de admiração e vergonha.

Eu sempre quis entender as pessoas, ou ao menos, as aceitar, com o que elas tem de bom e com as qualidades que me incomodavam. Se eu nunca mais impliquei com ninguém? O faço diariamente. Mas as vezes, diante daquilo que me parece uma limitação, sou capaz de ajudar, ao invés de apontar o dedo e criticar. Pois aceito que também eu tenho minhas limitações, e diariamente as pessoas se voluntariam em ajudar-me a superá-las.

Há alguns anos, sonhei que era pai. De uma menina, que sorria, feliz, e eu senti uma alegria indescritível. Acordei aquela noite para não mais voltar a dormir, pensando naquela sensação que então eu considerava assustadora, ainda que fascinante...

Não sei se um dia serei pai, e ainda, se seria um bom pai. É cedo ainda para pensar nisto, até por que, se um dia eu o for, espero planejar cada passo antes. Mas a idéia que então me deixou assustado, a responsabilidade que me parecia impossível, me surpreende, por vezes, quando me pego em sorriso e ternura, observando uma criança sorrir, nos braços de pais e mães mundo a fora.

Por alguns anos não conseguia olhar nos olhos das pessoas enquanto conversava. Tinha medo que vissem eles, nos meus, a tristeza que me consumia.

Hoje, converso olhando nos olhos das pessoas, procuro entendê-las, saber de seus anseios, de sua sina. Cada um de nós é um universo paralelo, não há ninguém lá fora exatamente igual a nós.

Sinto, sim, saudades de quem já fui, da pessoa que originou a esta que vos escreve. Da pessoa que um dia sonhou ter o mundo nas mãos, e hoje, de mãos leves, é mais feliz do que consegue demonstrar.

A maré não tombou o barco. Dele desce alguém que humildemente acredita estar vencendo a primeira batalha contra si mesmo, não por aniquilar o inimigo, mas por fazê-lo entender que não somos quem pensamos ser. Que não necessitamos ser quem pensamos ser, quem pensam que devemos ser.

Somos apenas quem podemos ser.


P.S..: A eternidade relativa de um dia passou. Voltei das férias :-)

Nenhum comentário:

Pesquisa google